Base de Ricardo Nunes (MDB) na Câmara se articula para aprovar projeto de desapropriação do terreno; agremiação tenta recuperação judicial
Por Hyndara Freitas - São Paulo
Anunciado em 2022, o plano de transformar o Jockey Club de São Paulo em um parque tem avançado nos últimos meses. A prefeitura recentemente avaliou em R$ 95 milhões o terreno onde o clube está instalado desde 1941, no bairro de Cidade Jardim, na Zona Oeste. A ideia da gestão Ricardo Nunes (MDB) é abater esse valor dos mais de R$ 800 milhões que a agremiação deve em IPTU ao município. Ao mesmo tempo, há uma articulação da base do prefeito na Câmara Municipal para aprovar um projeto de desapropriação do terreno.
O processo deve avançar em meio a discussões jurídicas. Historicamente, o Jockey contesta os tributos cobrados pela prefeitura, argumentando que não deveria pagar IPTU e sim o imposto sobre a propriedade territorial rural (ITR), já que desenvolve atividades rurais como a criação de cavalos, e questiona também os cálculos tributários feitos pela gestão municipal para definir o valor do imposto.
O Jockey também reclama de ser o único clube da cidade obrigado a pagar IPTU. Isso porque uma lei de 1966 foi alterada em 2008 para fixar que agremiações desportivas são isentas do imposto "desde que não efetuem venda de 'poules' ou talões de apostas" - justamente o caso do Jockey. O valor do terreno também é contestado pela diretoria do clube, que aponta que o espaço vale muito mais do que a prefeitura quer pagar.
Em nota, o Jockey afirmou que "há profundo equívoco nos lançamentos do IPTU relativos ao imóvel, o que já foi objeto de pronunciamento do Judiciário" e que há uma "desproporcionalidade" no valor de avaliação do terreno para desapropriação em relação ao valor cobrado pela prefeitura de impostos.
"Não há interesse público nessa investida municipal, pois o Jockey disponibiliza ao público a frequência, sem nada exigir, para ingresso em suas dependências, e por outro lado, há bem próximo instalado e funcionando o Parque do Povo", disse a agremiação, acrescentando que o local abriga "inúmeros associados, funcionários" e "valioso acervo cultural, constituindo-se em importante cartão postal e marco histórico da cidade de São Paulo".
A prefeitura quer desapropriar o terreno com base no instrumento de "dação em pagamento", em que o município paga uma área privada descontando os débitos tributários do contribuinte. Neste caso, como a gestão avalia que o terreno valeria menos do que a dívida, a cobrança dos impostos seguiriam mesmo após a desapropriação. Nunes fala em transformar o espaço em parque ao menos desde 2022, e já aprovou projetos no Legislativo para possibilitar a medida. O prefeito tem dito que esta é a única saída para o local, que deve IPTU há décadas e não teria condições de pagar.
Procurada, a Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento (SMUL) informa que "a revisão do Plano Diretor passou a prever a criação de um parque no local. No momento, está em curso a avaliação de Decreto de Declaração de Utilidade Pública. Após aprovação da DUP, terão início as tratativas judiciais para desapropriação da área e, posteriormente, as análises para implantação de um parque. O contribuinte possui um total de R$829.589.257,73 de dívidas com o Município".
Menos arrecadação e cobranças na Justiça
Antigo reduto da elite paulistana situado há mais de 80 anos de frente para a Marginal Pinheiros, o Jockey Club enfrentou uma série de reveses nos últimos anos. No ano passado, foi sancionada uma lei que proibia a aposta de cavalos no município, mas a Justiça suspendeu a eficácia da regra.
Ao mesmo tempo, o local passa por uma crise financeira há décadas, que só se agravou conforme o interesse pelo turfe passou a minguar - o que levou também à inadimplência de sócios, que hoje não chegam a 400. A mensalidade para os associados é de R$ 540.
Ao longo dos anos, o quadro de funcionários encolheu e muitos criadores transferiram seus cavalos para jóqueis de outras cidades, como Campinas, Curitiba e Rio de Janeiro. Hoje, cerca de metade dos estábulos está vazia e a frequência das corridas diminuiu: eram três por semana, e atualmente as disputas ocorrem somente aos sábados.
Há relatos de treinadores e proprietários de cavalos que passam meses sem receber pagamentos. Em fevereiro, um conselheiro do clube fez uma carta aberta relatando que os prêmios de uma prova realizada em 12 de outubro de 2024 ainda não haviam sido pagos quatro meses depois. O patrimônio do clube enfrenta riscos não só na capital, já que o centro de treinamento de Campinas também irá a leilão para quitar dívidas.
Neste cenário, o Jockey tenta entrar em recuperação judicial desde o ano passado. Em setembro, a Justiça suspendeu por 60 dias as penhoras contra a agremiação, que com frequência é alvo de ações de cobrança por empresas de limpeza e segurança e outros fornecedores por falta de pagamento pelos serviços. A autorização para recuperação judicial, entretanto, ainda é discutida no Tribunal de Justiça, pois há dúvidas se uma associação civil pode ou não fazer esse pedido. O Jockey tenta convencer os magistrados de que exerce atividade empresarial.
Parque previsto em lei
Desde 2023, o Plano Diretor de São Paulo prevê que o Jockey será transformado em parque. Mas, para isso, é necessário que a prefeitura desaproprie o terreno. Para calcular o valor da área, a prefeitura considerou que boa parte do terreno é tombado e que o espaço é classificado como Zona Especial de Proteção Ambiental (Zepam), ou seja, as regras de construção são extremamente restritas na área. Mesmo os arredores são limitados, já que a maior parte do bairro Cidade Jardim é classificado como zona exclusivamente residencial (ZER).
No ano passado, o prefeito contava com a proibição do turfe na cidade como estratégia para viabilizar o terreno, sob o argumento de que apenas essa prática esportiva justificaria a existência do espaço. Como a norma está suspensa pela Justiça, a gestão municipal tem avançado no caminho da desapropriação. A matrícula do terreno consultada pelo GLOBO prevê prefeitura ficará com o terreno somente caso o clube seja dissolvido.
A desapropriação do Jockey causa apreensão nos vizinhos. Alice Maria Barretto Prado Ferreira, presidente da associação Sociedade Amigos da Cidade Jardim, afirma que a cidade "carece de parques", mas questiona eventuais interesses imobiliários da mudança. Ela lembra que, em dezembro, a Câmara Municipal aprovou às pressas projeto que mudou as regras urbanísticas de algumas quadras do bairro. Uma das emendas transformava a Avenida das Acácias, a Rua Taques Alvim e a Rua Jaguanambi em Zonas Corredor, uma classificação que permite pequenos comércios. Em janeiro, o prefeito vetou as mudanças e as vias continuam a permitir apenas casas de até três andares (dez metros de altura), sendo proibidas atividades comerciais.
- Eu me questiono a que interesses atendem a desapropriação, dado que nosso bairro, Cidade Jardim, foi foco de emendas propostas pelos vereadores quando da revisão da Lei de Zoneamento para mudar sua principal característica, de um bairro residencial. Hoje, os incorporadores estão por todo o bairro e a proposta de desapropriação nos deixa apreensivos com o que pode acontecer, porque falta transparência aos processos e os principais interessados não são ouvidos - afirma.
A briga entre o Jockey e a prefeitura não se limita ao terreno da Marginal. Em 2014, a prefeitura desapropriou uma área de 143,5 mil metros quadrados na Avenida Francisco Morato, na Zona Oeste, e transformou o local no Parque Chácara do Jockey. À época, o valor de R$ 63,9 milhões foi abatido do pagamento dos impostos devidos pela agremiação, mas nunca houve pacificação sobre quanto o terreno valia e até hoje o caso é discutido na Justiça. O Jockey alega que a prefeitura deve mais de R$ 300 milhões ao clube.
O arquiteto e urbanista Valter Cadana, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, aponta que um novo parque é sempre bem-vindo, mas neste caso é preciso considerar prioridades e garantir que a prefeitura não terá altos custos com o local.
- É importante que a prefeitura não gaste nada, seja com custos judiciais, seja com repasse de dinheiro para desapropriar. Seria relevante também ter planos para a transformação das Marginais, interligando os parques ao longo dela, como o Parque do Povo, o Campo de Marte e o Jockey, quem sabe com uma ligação de transporte público gratuita aos fins de semana, um projeto maior de estruturação metropolitana - aponta.
O Globo
https://oglobo.globo.com/brasil/sao-paulo/noticia/2025/04/26/prefeitura-de-sao-paulo-avanca-em-plano-para-transformar-jockey-club-em-parque-por-abatimento-de-divida.ghtml