Gilberto Gil em show no Rio de Janeiro em abril, na turnê Tempo Rei, de despedida do palco Foto: pridiabr/Divulgação |
Show de Gilberto Gil é o melhor lugar do mundo: O que esperar da passagem da turnê por São Paulo

Show de Gilberto Gil é o melhor lugar do mundo: O que esperar da passagem da turnê por São Paulo

'Tempo Rei' desembarca em SP nesta sexta, 11; Gilberto Gil fará quatro shows na cidade em sua despedida das grandes apresentações

PEDRO SÓ


O show Tempo Rei consagra um dos colossos de uma geração iluminada da música brasileira sem apelar para a nostalgia e o sentimentalismo. Com inteligência, elegância, apelo popular e a devida grandeza. Musical e fisicamente mais talhado para as apresentações ao vivo em grandes espaços do que seus pares geniais Caetano Veloso e Chico Buarque, Gilberto Gil é, aos quase 83 anos, um bicho - e bruxo - de palco, com os superpoderes e as capacidades físicas mortais muito bem preservadas.

O que ele vem mostrando, na estreia em Salvador e nas quatro primeiras noites cariocas da turnê, e que deve se repetir em São Paulo a partir desta sexta-feira, 11, no Allianz Parque, é imperdível.

Em termos de espetáculo cênico e apelo visual, também não deve nada, nenhum dólar hipertenso, mariola ou cigarro Yolanda, aos megashows de astros pop internacionais. Em termos de repertório e vivência coletiva, pode ser muito mais profundo do que qualquer "experiência" prometida em festivais e grandes eventos de show business.

Dirigido por Rafael Dragaud e com cenografia de Daniela Thomas, Tempo Rei está à altura da ambição, ou melhor, do objetivo confesso do espetáculo, que é "celebrar a ampla obra musical do cantor e compositor baiano, trilha sonora que está enraizada na cultura do país, além de estar presente no DNA de todo brasileiro".

Fiel à visão daquilo que Gilberto Gil chama de seu "filosofar popular", o tempo que conceitua a turnê é o da canção título (lançada em 1984), que ele mais ou menos explica e complica assim, em texto do site gilbertogil.com.br: "tempo enquanto eternidade sorvedora de todas as suas dimensões, para a sua transdimensionalidade, de saída do tempo-existência para o tempo essência (o eterno), do tempo para o atempo". Dispensando citações famosas do Eclesiastes ou dos clássicos versos de T.S. Eliot (1888-1965), peço socorro aqui a um poema menor, Explicação da Eternidade, do escritor português contemporâneo José Luís Peixoto: "Devagar, o tempo transforma tudo em tempo".

Como foi o show de Gil no Rio

São cerca de 140 minutos, servidos em 8.400 segundos muito intensos, que passam rápido, com 29 músicas (sem contar as citações incidentais). O velho Gil dá uma bela canseira no público que estiver assistindo de pé, mesmo que resista a dançar durante boa parte do show. Porque o roteiro é irresistível, não há espaço para aquela música menos interessante, propícia a uma ida ao banheiro ou à fila para comprar bebida. A vontade é de não perder um instante sequer.

O cenário-instalação concebido por Daniela Thomas, com uma escultura em espiral, feita de metal e placas flexíveis de LED, encanta, informa e emociona, acrescentando referências visuais, trechos das letras e mensagens que dialogam com cada música e com o público. Segundo Rafael Dragaud, é uma árvore do tempo, representando múltiplas cosmogonias propostas pela obra de Gil. Também pode ser lida como uma espiral da vida, um gigantesco DNA.




Por isso mesmo é válido dizer que, na era dos nepobabies, a banda de Gilberto Gil é um "family affair" (salve, Sly Stone!) de altíssimo nível, à prova de ataques, cobranças e bullying virtual. Além do filho Bem Gil na direção musical e no contrabaixo, a colaboração familiar inclui a filha Nara Gil brilhando intensamente nos vocais (que são muito mais que de apoio), o caçula José Gil, baterista, na fundação rítmica (e coassinando a direção musical, junto com Bem), e o incandescente neto João Gil (filho de Nara), na guitarra, explorando a porção rock do repertório.

A abertura é de alto impacto, com o ijexá pop Palco, megahit de roupagem Earth, Wind & Fire que apresenta as armas do incrível time de sopros comandado por Diogo Gomes (trompete e flugelhorn) e Marlon Sete (trombone). Composta há 45 anos, quando Gil, em crise, pensava em se retirar de cena, ela serve como cartão de visitas pessoal do artista e carta de intenções do programa proposto, com a conclamação geral: "Fogo eterno pra afugentar/ O inferno pra outro lugar/ Fogo eterno pra consumir/ O inferno fora daqui". Gil canta bem, com todos os uivos a que tem direito, puxando um exorcismo coletivo no "fora daqui" que toma as arquibancadas.

A segunda música é Banda Um (do álbum homônimo de 1982), afropop que celebra o time de músicos reunidos, como um prefixo radiofônico. Faz sentido como continuação do recado de Palco, mas não está ali por acaso: no trocadilho com "umbanda" da repetição no refrão, celebra um universalismo de cultos, algo que Gil chama de "panteísmo necessário da umbanda". Uma tomada de posição que pode dialogar (ou não) com o fato do mano Caetano Veloso ter cantado um louvor no recente show com Bethânia.

A canção seguinte, Tempo Rei (de 1984), assumidamente composta em diálogo com Oração ao Tempo, de Caetano, fecha o primeiro bloco, todo oitentista, arredondando o conceito do show com um lindo arranjo.

Só então é que Gil cumprimenta o público, brevemente, e segue o "boa noite" com uma citação de Aqui e Agora, antes da lembrança de onde tudo começou, em Ituaçu, no interior da Bahia, do menino que aos três anos já queria ser "musiqueiro", fascinado pelo som das sanfonas e dos violeiros. A música escolhida é o clássico de Dominguinhos e Anastácia, Só Quero um Xodó, gravado por Gil em 1973, com imenso sucesso popular.

Gil emenda apresentando dois dos grandes trunfos do show, o sergipano Mestrinho do Acordeon, 36 anos (discípulo de Dominguinhos), e o fluminense (de São Gonçalo) Marlon Sette, que também contribui com arranjos. A partir daí vem uma sequência de canções monumentais, já com um sentido cronológico, em que a adição de um quarteto de cordas feminino faz a diferença.

A primeira é Eu Vim da Bahia (tão lapidar que muitas vezes é erroneamente atribuída a Dorival Caymmi), composta em 1965, quando Gil ainda era executivo da multinacional Gessy Lever (hoje Unilever), apresentada em um arranjo deslumbrante, a ser degustado em cada detalhe.

A segunda é Procissão (1965), introduzida pela tradicional oração cantada Meu Divino São José: um momento forte, sublinhado pelas imagens em vídeo e os efeitos visuais nos telões que o tempo todo expandem a narrativa musical. Em seguida, o marco tropicalista Domingo no Parque (1967) faz a curva da trajetória criativa de Gil.

Na oitava música, Cálice (1973), um dos momentos mais intensos de resposta do público. Um coro de "sem anistia" costuma preceder ou se sobrepor ao depoimento de Chico Buarque (editado com cortes abruptos no texto, uma das poucas imperfeições do show) lembrando a censura nos tempos do regime militar. Com imagens históricas ao fundo, incluindo uma faixa com a frase "Ditadura assassina", Gilberto Gil encara o desafio vocal do arranjo com galhardia, atingindo a dramaticidade exigida.

Caminhando para o fim


O terço inicial do show se fecha com Back in Bahia (introduzida por trecho de Batmacumba), o rock escolhido para retratar os anos de exílio em Londres, abrilhantado por um solo incendiário de João Gil, e as emblemáticas Refazenda (introduzida na sanfona por um trecho de Tenho Sede, outra composição de Dominguinhos e Anastácia) e Refavela, quando os telões laterais puxam/ensinam o coro afro (Kiriê, iaiá) ao público menos familiarizado com a canção, e a dupla da percussão Gustavo Di Dalva e Leonardo Reis dá seu show no proscênio. Na introdução, Gil conta da viagem transformadora que fez à Nigéria, em 1977, para participar do Festival Mundial de Arte e Cultura Negra.

Depois da 12ª música, o megahit Não Chore Mais, com mais colorido político no tom dos anos de chumbo (e um contraponto no cenário, as fitas do Bonfim com "tudo, tudo, tudo vai dar pé"), vem a parte bailão, com Gil elétrico, guitarreiro dançante, emendando sequência reggae (Extra, Vamos Fugir e A Novidade), uma apoteótica explosão de luzes purpurinantes sobre o público na disco-funk "quincyjônica" Realce, e mais uma trinca matadora da fase hits de danceteria dos anos 1980: A Gente Precisa Ver o Luar, Punk da Periferia (quando exibe o dedo médio em riste, brincando também com outras formações "digitais" do gesto) e Rock do Segurança.

O terço final, com Gil sentado ao violão, é introduzido com delicadeza por Mestrinho, tocando Retiros Espirituais, do álbum Refazenda (1975), antes de Se Eu Quiser Falar com Deus. A partir daí, dependendo do dia, a voz pode se ressentir um pouco, o que é natural, considerando a duração do show.

O mistério das participações especiais no show do Gil


Participações especiais cercadas de mistério (no Rio, teve Marisa Monte em A Paz, e Caetano Veloso em Super-homem - A Canção) costumam pintar por aí, nessa parte, em meio a pérolas como Estrela (única canção noventista do repertório - embora tenha sido composta em 1981, Gil só a gravou em 1997). Em Drão, dedicada a Preta Gil, imagens do telão comovem ao mostrar a cantora quando criança, junto da mãe, Sandra Gadelha, inspiradora da canção.




Num respiro antes da arrancada derradeira, Nara Gil e Mariá Pinkusfeld dão brilho especial a Esotérico, e os pífanos de Thiago Queiroz renovam o grande clássico Expresso 222. Para sacudir qualquer possibilidade de cansaço, a banda emenda Andar com Fé (que em uma das noites do Rio teve canja de Lulu Santos), com Gil exigindo participação do povo ("cadê a palma?"), Emoriô (tocada em Salvador com o Baiana System, na acoplagem com Dia da Caça) e mais um irresistível ijexá discothèque, Toda Menina Baiana, costurado na seminal Frevo Rasgado (de 1968).

Assim como o público, Gil dança à vontade, sem guardar energias para o bis. E volta arrasador, com a famosa introdução guitarreira de Esperando na Janela, de Targino Gondim, dando a deixa para casais fazerem da pista vip um salão de forró. O gran finale é com Aquele Abraço.

Gilberto Gil sai de cena sambando, depois do ad libitum com trecho de Na Baixa do Sapateiro, de Ary Barroso. Fica a certeza: o melhor lugar do mundo durante as duas horas e vinte minutos de Tempo Rei é onde esta turnê estiver passando.

Tempo Rei: Gilberto Gil em SP

11, 12, 25 e 26/4, às 20h: Allianz Parque. Av. Francisco Matarazzo, 1705, Água Branca

Quanto: R$ 280/R$ 530 (baixa disponibilidade; camarotes oficiais Backstage Mirante, Placar, One e Fanzone vão de R$ 900 a R$ 2.200).

O Estado de S.Paulo
https://www.estadao.com.br/cultura/musica/show-de-gilberto-gil-e-o-melhor-lugar-do-mundo-o-que-esperar-da-passagem-da-turne-por-sao-paulo/