Dos delitos e das penas, a velha lição de Cesare Beccaria ao Supremo, por Luiz Carlos Azedo

Dos delitos e das penas, a velha lição de Cesare Beccaria ao Supremo, por Luiz Carlos Azedo

Golpistas devem ser punidos de acordo com seus crimes. Entretanto, a ideia de que a pena deve ser exemplar carrega uma subjetividade que se sobrepõe ao devido processo legal

Dos Delitos e das Penas, de Cesare Beccaria (1738-1794), Marquês de Gualdrasco e de Villareggio, é um clássico do Iluminismo e do direito penal moderno. Publicada em 1764, a obra critica duramente os abusos do sistema penal da época e propõe uma justiça mais racional, humana e eficaz. Naquela época, as penas eram extremamente arbitrárias e brutais. Isso também fazia da política um jogo mortal, no qual o perdedor poderia ser enforcado, guilhotinado ou fuzilado, depois de obrigado a confessar mediante torturas brutais, que muitas vezes levavam à morte antes mesmo do julgamento.

Aqui no Brasil, é o caso do alferes Joaquim da Silva Xavier (Ritápolis, 1746), o Tiradentes, que foi enforcado e posteriormente esquartejado, no Rio de Janeiro, em 21 de abril de 1792, ou seja, 28 anos depois da publicação da obra de Beccaria. Partes de seu corpo foram expostas nos principais centros urbanos do Rio de Janeiro e Minas Gerais. A sua casa foi queimada, o terreno, salgado, e todos os seus bens confiscados.

Um outro exemplo é o destino de Joaquim da Silva Rabelo, depois Frei Joaquim do Amor Divino Rabelo. Popularmente conhecido como Frei Caneca (Recife,1779-1825), foi um escritor, clérigo católico e político brasileiro, que participou da Revolução Pernambucana (1817) e foi líder e mártir da Confederação do Equador (1824).

Esses mesmos métodos foram adotados pelo regime militar (1964-1985). O relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV) reconhece 434 mortes e desaparecimentos políticos entre 1946 e 1988. Dos quais 362 casos de mortes, com dezenas de desaparecimentos políticos, ocorreram no período do regime, como mostra o filme Ainda estou aqui, de Walter Salles Júnior com Fernanda Torres no papel de Eunice Paiva, viúva do ex-deputado Rubens Paiva.

A atualidade de Cesare Beccaria ainda salta aos olhos quando se vê o que acontece nas periferias das grandes cidades e presídios brasileiros. Voltaire considerava a obra um verdadeiro código de humanidade. O economista e filósofo milanês influenciou a imperatriz Maria Teresa da Áustria a abolir a tortura em 1776.

A imperatriz Catarina II, do Império Russo, ordenou a inclusão dos conceitos do livro no Código Criminal de 1776. Em 1786, Leopoldo de Toscana emitiu a primeira lei a adotar as reformas defendidas por Beccaria no território no qual atualmente encontra-se a Itália. No Reino da Prússia, também houve reformas neste sentido, realizadas por Frederico, o Grande.

Punição ou vingança?


Sua obra influenciou as constituições e códigos penais modernos. Também inspirou reformas no sistema de justiça em vários países, inclusive no Brasil, onde seus princípios aparecem na Constituição e no Código Penal. Beccaria condenou o uso da tortura como meio de obter confissões, por ser cruel, injusta e ineficaz, pois uma pessoa inocente pode confessar só para acabar com a dor. Para ele, a pena de morte é desnecessária, ineficaz e moralmente errada; penas longas e proporcionais têm maior poder de dissuasão.

É dele o princípio de que só pode haver crime e pena se houver lei anterior que os defina, por isso mesmo, as leis devem ser claras e conhecidas por todos. Beccaria argumenta que a certeza da punição tem mais efeito dissuasivo que a severidade. Um sistema eficiente e célere é mais justo e eficaz. O papel do juiz é aplicar a lei, não a criar, sustentava. A pena deve ser proporcional ao crime cometido e ter o objetivo de prevenir novos crimes, não pode ser uma vingança.

Chegamos ao ponto. O julgamento dos envolvidos na tentativa de golpe de estado de 8 de janeiro de 2023 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), entre os quais o ex-presidente Jair Bolsonaro e quatro oficiais generais de quatro estrelas, fato inédito na nossa história republicana, precisa ser conduzido com firmeza e equilíbrio. Golpistas devem ser punidos de acordo com seus crimes. Entretanto, a ideia de que a punição dos envolvidos deve ser exemplar carrega uma subjetividade que se sobrepõe ao devido processo legal.

Nesse aspecto, a decisão do ministro Alexandre de Moraes, que autorizou Débora Rodrigues dos Santos - acusada de pichar a estátua da Justiça, em frente ao STF, durante os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023 - a cumprir prisão domiciliar deve servir de paradigma. O Supremo já condenou 503 envolvidos nos atos golpistas.

Envolvida na trama golpista desde quando estava acampada em frente ao Quartel general do Exército, no setor Militar de Brasília, Débora estava presa preventivamente e começou a ser julgada. Relator do caso, Moraes propôs sua condenação a 14 anos de prisão, voto que foi acompanhado pelo ministro Flávio Dino, mas o julgamento na Primeira Turma do Supremo foi suspenso porque o ministro Luiz Fux questionou essa dosimetria da pena e pediu vistas do processo.

Débora já cumpriu quase 25% exigidos de uma possível pena; portanto, se fosse condenada, teria progressão da pena em breve. Moraes ressaltou que ela não pode ser prejudicada pela interrupção. A ré tem filhos menores de 12 anos; e as investigações já foram concluídas, o que torna injustificável a prisão preventiva, ou seja, a punição antes do trânsito em julgado.

No seu depoimento, Débora classificou o próprio gesto como "ilegal", disse que "feriu" o Estado democrático de direito e pediu perdão. Sua prisão domiciliar, com medidas cautelares, joga luz sobre a situação de outros presos e/ou condenados: a dosimetria e a execução das penas precisam ser analisadas caso a caso.

Correio Braziliense
https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/dos-delitos-e-das-penas-a-velha-licao-de-cesare-beccaria-ao-supremo/