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Moraes e Musk: um conflito previsível, por Carlos Melo e Milton Seligman

Moraes e Musk: um conflito previsível, por Carlos Melo e Milton Seligman

Embate no contexto das relações entre interesses públicos e privados não é novidade

Carlos Melo, Milton Seligman

Ao longo dos séculos, a humanidade aprendeu a regular o uso de fogo, armas, automóveis, drogas e muitos outros produtos e serviços. Não será diferente com as redes sociais, que se organizam na internet.

O conflito entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e o empresário Elon Musk, no contexto das relações entre interesses públicos e privados, não é novidade e seu desfecho é previsível. Podemos dar o spoiler logo no início: as instituições nacionais vão vencer.

O caso da Standard Oil é um exemplo semelhante. Fundada em 1870 por John D. Rockefeller, a empresa rapidamente dominou a indústria de petróleo dos EUA, controlando cerca de 90% das refinarias e oleodutos. Em resposta às práticas monopolistas da empresa, a Lei Sherman Antitruste foi aprovada em 1890. Em 1911, a Suprema Corte dos EUA decidiu desmembrar a Standard Oil em 34 empresas independentes, marcando um ponto crucial na aplicação da legislação antitruste. Rockefeller era contrário a qualquer regulamentação.

As redes sociais, como qualquer atividade humana, trouxeram inovações e utilidades, mas também problemas. A cada dia, a humanidade compreende melhor sua natureza e complexidade, as vantagens e riscos de seu uso. Eventualmente, estabelecerá um modo de potencializar o positivo e restringir o prejudicial ao interesse comum. Nos processos democráticos de regulamentação, o bem-estar coletivo deve ter, no mínimo, a mesma prioridade que o interesse individual.

Com essa perspectiva histórica, não deveria haver tanto barulho pelo fato de o Poder Judiciário brasileiro adotar medidas para limitar a atuação da rede social X, antes conhecida como Twitter, de propriedade de Musk. A decisão monocrática do ministro Alexandre de Moraes, do STF, que determinou a retirada do X, posteriormente referendadas pela 1ª Turma daquela corte, não é disparatada e segue uma linha de normas em debate e consagração em vários países. Outras decisões, ainda provisórias, correm em segredo de justiça e delas se sabe ainda pouco.

Há confusões nesse debate. A primeira é o conceito de liberdade de expressão no Brasil, diferente do que prevê a norma norte-americana. No Brasil, a liberdade de expressão não é absoluta e possui limites. Podemos pensar e exteriorizar o que quisermos, mas essa liberdade não pode violar outros direitos. Por exemplo, não temos liberdade para fazer barulho e incomodar o sono das pessoas. A lei estabelece parâmetros para isso. Não podemos defender ou incentivar crimes, atentar contra a saúde das pessoas ou explorar sua ignorância. Em um mundo civilizado, as instituições existem para encontrar esses equilíbrios que garantem a liberdade do indivíduo e a segurança da sociedade.

Essas questões pareciam pacificadas no mundo real e analógico, mas voltaram ao debate no mundo digital. Pode-se atentar contra reputações, mesmo sem provas, mentir ou induzir ao erro, causando prejuízos a outros. Mas isso tem consequências na maior parte dos países. O que se faz nas redes sociais é passível de arguição judicial. E por que não seria?

As instituições estão alguns passos atrás das inovações, atualmente produzidas no ambiente privado. Isso faz com que as regulamentações venham posteriormente ao lançamento das inovações. Em períodos de profundas revoluções nos modos de produção de bens e serviços, costuma ser assim. As normas vêm depois, geralmente a partir das consequências do uso das inovações pela sociedade. Faltam normas, instrumentos e mecanismos para fiscalizar e punir caso a caso.

No mundo analógico, é necessário responsabilizar não apenas as mensagens, mas também os meios que as viabilizam. Um cinema é responsável pela segurança de seus clientes. Um parque de diversões pode ser punido e fechado pela negligência de sua direção. Por que seria diferente com as redes sociais?

O mundo digital não difere em status jurídico do resto do que age e produz efeitos na sociedade. As redes sociais precisam ser responsabilizadas e ter representantes em cada país onde atuam, para que possam ser acionadas e responsabilizadas por manter seu produto dentro da lei e do bem-estar da sociedade. Uma rede de gás encanado, por exemplo, traz riscos e precisa ser fiscalizada, e seus responsáveis precisam ser acessíveis para serem acionados por qualquer intercorrência prejudicial. Por que com o mundo digital seria diferente?

Numa sociedade democrática, magistrados só podem agir dentro dos limites das normas legais. A Constituição Federal e leis complementares enquadram a ação dos ministros das cortes superiores. Um desses limites é que suas decisões monocráticas, quando contestadas, sejam avaliadas por seus pares. É por isso que os tribunais são colegiados. Essa multiplicidade existe para corrigir ações individuais. Juízes do Supremo podem sofrer impeachment no Senado Federal, que representa os estados da Federação. Se é assim com o STF, que responde por seus atos, por que seria diferente com as empresas que organizam e dominam as redes sociais?

O ministro Alexandre de Moraes pode muito, mas não pode tudo. Em tese, está contido pela lei e por normas que o submetem às decisões dos colegiados. Se é assim com Alexandre de Moraes e com o STF, por que seria diferente com Elon Musk e com o X?

Um superempresário também pode muito, mas não pode tudo. Não é dono do mundo, como pensa ser, assim como Rockefeller pensou um dia. Em qualquer lugar do mundo civilizado, ele será limitado e responsabilizado pelos efeitos causados por ele e suas empresas, como contrapartida para ter a liberdade de operar. Foi assim que a humanidade aprendeu a criar instituições que garantem um certo equilíbrio e uma razoável contenção dos que querem desenhar um mundo só para si.


CARLOS MELO
Cientista político, professor titular do Insper

MILTON SELIGMAN
Global Fellow do Woodrow Wilson Center's Brazil Institute, professor convidado do Insper e ex-ministro da Justiça

Jota
https://www.jota.info/artigos/moraes-e-musk-um-conflito-previsivel